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Ler é imaginar!


Quando fez 15 anos, minha filha mais velha, Maria Gabriela, pediu de presente as vestes do Harry Potter. Sabe o que é? Aquela capa preta comprida cuja lapela muda de cor conforme a casa na qual cada bruxinho está predestinado a estudar. As lapelas das vestes da Gabi eram vermelhas e naqueles 15 anos não tivemos salto alto, vestido decotado nem balada a noite toda.

Com as vestes em mãos, ela se trancou no quarto e dali a pouco ressurgiu com capa, gravata e cachecol originais. A camisa, a saia e as meias eram improvisadas. Veio até nós na sala e afirmou: “agora sim, sou uma verdadeira estudante de Hogwarts”. Não deixou a gente tirar foto e tampouco fez uma selfie. Respirou profundamente, orgulhosa, retirando-se de volta ao quarto.

Gabi acabara de realizar um grande sonho, um sonho da sua imaginação. Não precisava de festa e tampouco de alarde. Sonho é sonho e quando se realiza não precisamos de muita coisa além do prazer que sentimos... Por anos seguidos ela me confessou que tinha certeza de que receberia o convite de ingresso da escola de magia. “Mãe, eu sei que não é verdade, mas não consigo deixar de acreditar”.

Foram os filmes que fizeram a cabeça da minha filhota? Sem dúvida nenhuma. Mas como negar a importância dos sete livros lidos de uma só vez, cada qual com cerca de 500 páginas? Eles foram lidos e relidos não uma vez, mas duas! Isso em português. Depois, a Gabi leu em inglês e também em espanhol. Leu ainda artigos de revistas, resenhas de jornais, blogs e sites – além, é claro, das legendas dos filmes. Leu tanto que sabia de cor alguns trechos; fazia a defesa das passagens que eram melhores no texto escrito do que no filme (e vice-versa também); encontrou erros de edição e de impressão. No seu jogo simbólico, achou que, por conhecer tão bem a obra, poderia reescrevê-la. “Do ponto de vista da Hermione, mãe. As meninas precisam conhecer a versão feminina de tudo o que aconteceu”.

Maria Gabriela foi arrebatada pelos livros do bruxinho mais querido de todos os tempos. Arrebatada, abduzida, sequestrada. De corpo e alma. Durante quase sete anos, o limite entre realidade e fantasia ficou tênue em sua cabecinha de criança-que está-virando-adolescente. Tenho certeza de que sua infância foi prolongada por que ela não conseguia (ou não queria) abrir mão do jogo de faz de conta que os personagens, os cenários e a trama provocavam em sua imaginação. Estava crescendo, mas queria brincar...

Essa sensação eu também tive quando criança. E olha que naquele tempo não existia tantos filmes e os livros eram publicados em edições bem simplesinhas, sem ilustrações coloridas ou papéis com brilho. Assim como a Gabi, eu me transportei em mais de uma ocasião para a casa da Madalena, em “Desastres de Sofia” da Condessa de Ségur; também desci rio abaixo com Tom Sawyer nos livros de Mark Twain. Minhas irmãs e primas queriam ser a Narizinho e eu também quase quis. Mas não sei bem por que a Emília era a minha preferida... Se a Pollyana sofria, eu sofria ainda mais com ela, por ela. Amava as histórias de moça e os romances do século XIX até hoje fazem a minha cabeça.

Ser abduzido pela obra, perder-se em seus cenários, identificar-se com seus personagens, ser um personagem, sentir e pensar como ele... É isso que a leitura provoca em nossa imaginação, arrancando-nos da realidade e nos fazendo ser algo diferente de nós mesmos. Ler é imaginar e imaginar é poder.

O cinema também faz isso conosco? Claro. Mas os livros nos convidam a imaginar em silêncio, impregnando nossa mente e e nosso coração com ideias e sentimentos que nem sempre temos plena consciência (ao contrário dos filmes, em minha opinião, que entregam tudo muito pronto).

Naquele dia dos seus 15 anos, fiquei com a impressão de que a Gabi se despedia desse jogo fantástico, encerrava suas brincadeiras de faz de conta. Não pude dizer (e talvez nem devesse) que não é bem assim. Enquanto leitores, prosseguimos sendo arrebatados pelos livros. O tempo não tira isso da gente. Outro dia virei uma jovem hacker. Olhava ao meu redor e meu cérebro entrava no modo “investigadora”. Sabe qual é o livro? Ou melhor, os livros: trilogia Millenniun, Stieg Larsson. Li de uma só vez e assisti a todos os filmes. Versão norte-americana e versão sueca. Depois voltei a ler o primeiro livro. Fiquei com saudades. Mas agora estou cheia de paz e harmonia. Sem violência. Na minha cabeceira está a biografia do iogue Yogananda. Tenho respirado mais e melhor. Estou quase virando uma iogue também.

O fato é que os livros não nos abandonam. Não adianta crescer, fugir. Aquilo que eles provocam na nossa imaginação não passa conforme a idade avança. Pelo contrário: quanto mais lemos, mais fortes nos tornamos, mais ferramentas internas construímos. Os livros nos dão pistas, nos enriquecem. Alimentam a alma. Quanto mais cedo convidamos uma criança para ler, mais cedo ela começa a alimentar e a fortalecer a sua imaginação. Mais cedo ela compreende essa sensação de arrebatamento e a ela se entrega. Descobre o prazer. Nas entrevistas de trabalho, nos primeiros encontros amorosos, nas avaliações da escola... Todos nós deveríamos ser convidados a relatar um livro que nos tenha proporcionado tal prazer. Um privilégio, sem dúvida. Um direito, é certo.

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