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Ler ou contar a história?! - Parte 1/3


Quando todos saiam da mesa do almoço, eu aproveitava para ficar mais um pouquinho apenas para ouvir a minha avó Lúcia contar histórias. Nessa hora, ela se apoderava de seu papel de matriarca e se transformava na protagonista de uma família nem muito grande nem muito pequena, mas barulhenta o suficiente para fazer dispersar as suas narrativas em meio a tantas outras falas que até pareciam mais urgentes. Para os outros, pois para mim aquele momento em que minha avó assumia a palavra era sagrado.

Suas histórias não saiam de livros e tampouco eram inspiradas nas sagas e aventuras dos grandes heróis. Eram histórias do seu cotidiano de menina do interior do Paraná, a caçula de um sargento casado com uma imigrante de origem alemã. Coisas simples, mas que enchiam os meus pensamentos com imagens e o meu coração com sentimentos diferentes daqueles com os quais estava habituada em meu dia a dia de menina nascida e criada na Av. Paulista dos anos 70.

Os verões escaldantes nos quais ela e a irmã corriam para furtar um pedacinho da barra de gelo que o pai trazia para alimentar a tal geladeira (uma caixa de madeira, dizia ela rindo); os invernos rigorosos durante os quais todo cuidado com os sapatos era fundamental (ela só tinha um par de botas e outro de sandálias); as cascas dos abacaxi secando ao sol para depois serem transformadas em refresco; o cheiro de canela com açúcar da cuca; a Missa do Galo na qual ela conheceu meu avô...

Era uma época diferente: a arte de contar histórias parecia se desenvolver conforme as pessoas envelheciam... Eram os avós quem transmitiam as narrativas da família para as gerações mais novas. Tal como os tradicionais narradores tribais, o legado da trajetória, dos valores, das perdas e dos ganhos de cada família cabia aos mais velhos...

Não vejo isso acontecendo com os meus filhos. Seus avós parecem não ter nem o tempo nem a paciência de outrora. São ativos, trabalham e têm uma intensa vida social de almoços, jantares, espetáculos, livros para ler, redes sociais para administrar. Encontram os netos no máximo uma vez por semana. Todos os dez juntos em um encontro furtivo do qual todos logo têm que partir. A proximidade necessária para entabular uma história não existe. Uma pena!

E para piorar, sempre fui uma péssima contadora de histórias. Isso mesmo. Tanto que fui reprovada na escola da minha filha. Pediram uma história da minha infância e dali a alguns dias o texto que escrevi veio de volta com a uma observação da professora: "sem graça... não tem nada mais emocionante para contar?!". Respondi no mesmo papel: "não, não tenho... nasci e cresci num prédio em plena paulista da ditadura militar... minha família era de comerciantes, não se envolvia com política... não brinquei na rua, não tinha outras crianças onde morava... era boa aluna...". Minha filha ficou decepcionada. Os pais das outras crianças pareciam ter vivido tantas aventuras durante a infância...

Invejo quem sabe contar uma boa história. Não importa se uma história pessoal ou a adaptação imaginativa de uma passagem da Odisséia ou das aventuras de Monteiro Lobato.

Mas, para compensar, sempre fui boa leitora. Criei meus filhos submersos em livros, ora lidos em voz alta ora lidos em silencio. Eles compreendem o que é submergir entre as palavras escritas de um livro, diluindo seus próprios contornos até se fundir em uma história outra que não a sua própria.

Gabi sabe que atualmente estou totalmente dominada pelas amigas de Nápoles das narrativas de Elena Ferrante e se eu soltar algum palavrão em dialeto ela vai compreender... Da mesma forma que eu entendo quando o seu humor muda radicalmente, deprimindo-se, por causa de algum personagem sofredor dos romances de John Green que ela tanto ama. Fernando, meu caçula, nos acompanha nessa dissolução e nessas férias soltou frases como "o meu personagem...". Sim, o personagem do livro que teve que ler para a escola se tornou "seu".

Então quando me perguntam se é melhor ler ou contar uma história, eu hesito. Ambos alimentam a imaginação, ampliam nossas referências. Mesmo as histórias singelas como as da minha avó são capazes de nutrir a mente e o coração dos mais jovens... Por qual optar?

O bacana de ter filhos é justamente isso: temos continuamento que (re) descobrirmos nossas capacidades, nossas incapacidades, nossos desejos. Gostaria de dominar a arte de narrar, mas não domino. Meu marido tampouco. E mesmo ele sendo um leitor pouco atuante, também ele optou por ler. E lia maravilhosamente para os filhos pequenos. Suas leituras em voz alta eram divertidas e cheias de graça...

Agora, o problema mesmo surge quando alguém comenta: "nossa comprei um livro lindo dos irmãos Grimm para o meu bebê e todo dia conto um pouco das histórias... ". O quê?!! Tem um livro em mãos e prefere contar ao invés de ler?!!!

Mas esse debate retomo no próximo post, pois este aqui já ficou enorme... Cenas do próximo capítulo!

P.S. Não sei qual é o crédito da imagem que ilustra este post. Tirei da internet. Mas o curioso é que digitei "contar histórias" e a maioria das imagens que encontrei eram acompanhadas de um livro. Algumas poucas eram como esta: a interação do narrador com o seu publico sem a mediação do livro. Curioso, muito curioso...

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