Ler ou contar a história?! - Parte 2/3
Um amigo meu é fanático pelas aventuras do Gordo, escritas pelo querido autor brasileiro João Carlos Marinho. Lia quando criança e depois que seus três filhos nasceram começou a ler para eles também. Ler, não - é claro. Não seria adequado, os meninos eram muito pequenos. Para quem não sabe, "O gênio do crime" é um romance juvenil, cheio de intrigas e suspenses. Mas este meu amigo gostava tanto dessa história que simplesmente contava para a garotada que se reunia ao seu redor nas noites estreladas do sítio na Mantiqueira. A turminha ia em escadinha: 2, 4 e 6 anos, juntando também as sobrinhas e quem mais quisesse ouvir as histórias malucas do tio Edu. Sua narração hipnotizava, as crianças emudeciam. Ansiosas, só queriam confirmar se por acaso aquela Juju da história tinha alguma relação com a prima Juliana. "E esse Pepê, também chama Pedro como eu?", perguntava o mais velho. É que esse meu amigo temperava as suas narrativas trocando o nome original dos personagens do livro por outros que lembravam os nomes da garotada ouvinte. E não por acaso o personagem principal recebia um nome igual ao do menorzinho da turma, então um bebezão de 2 anos e pouco: Augusto.
Soube que, já no começo da adolescência, essa garotada teve que ler "O gênio do crime" na escola. Conheceram até mesmo o autor. Fizeram entrevista. Meu amigo contou que foi emocionante ver os seus meninos reencontrando a obra da infância depois de crescidos. Um deles chegou a ficar confuso, achava que eram histórias de família e se surpreendeu ao descobrir que o pai, na realidade, "roubara-as" de um livro tão famoso.
A opção por contar e não ler o livro deste meu amigo foi uma opção, digamos, afetiva. Como amava a história e adorava o autor, para ele era importante apresentar o seu livro da infância o mais cedo o possível para os filhos. Uma espécie de herança literária.
Isso não é incomum. Vejo outras pessoas fazendo igual. Tenho uma amiga, historiadora, que quis contar os poemas de Homero para o filho bebê. Isso mesmo, ela queria expandir a sua imaginação e lhe pareceu pertinente apresentar a mitologia grega ao seu pequeno numa versão, digamos, de mãe para filho. Não sei se algum dia ela chegou a deixar o bebê pegar com as próprias mãos os seus livros da Ilíada e da Odisseia tão queridos e estudados. Uma pena... Seria uma cena linda... Já imaginou?
Quando me questionam, então, se devemos ler o livro ou contar a história para a criança pequena eu sempre respondo: depende dos motivos.
O que motivou esses meus amigos a narrar a história ao invés de lê-la, para mim, é evidente. Independente do livro em si, eles gostavam das histórias e queriam compartilhá-las com os filhos. Só isso. Ah, mas tinha a dificuldade de compreensão por parte dos pequenos. É, tinha... Mas essa dificuldade não lhes impediu de curtir essas histórias com os filhos e até mesmo de ler alguns trechos. Tenho certeza de que, embora até possam ter omitido uma ou outra passagem, não fizeram grandes censuras à trama original.
Quando a pessoa (não importa se o pai, a mãe, a vó, o vô ou até mesmo a professora ou o professor) argumenta que preferiu contar por que não conseguiu ler o texto em voz alta, uma espécie de farol amarelo se acende na minha cabeça. Oppps, algo está acontecendo. É preciso examinar. O que será?
Tem gente que se sente envergonhada de ler em voz alta. Dá medo se expor. Para elas, eu sempre digo: ter filho é isso mesmo, somos obrigados a nos rever o tempo todo. Se bate aquela vergoinha na hora de ler, pode treinar antes. E ler mais. E ler sempre. A gente melhora com o tempo. Não sou boa de andar de bicicleta, mas depois que tive filhos retomei o hábito. Melhorei um pouco, ainda tenho medo. Mas já passeio com a minha família (no começo ficava sentada). A leitura em voz alta é treino e ler para a criança pequena é ler em voz alta...
Tem gente que não gosta do assunto. Acha chato. Ou não gosta do tipo de texto. Com elas, eu comemoro: parabéns! Todos esses gostos e desgostos só mostram o quanto a pessoa está lendo. Quanto mais lemos, mais nos assumimos enquanto leitores. E ler não é se submeter. Pelo contrário. Ah, aquela poesia é de um poeta famoso? Então, prefiro romances. Ah, o romance é um bestseller? Pois é, não curti... Alguns acham que a leitura deve ser que nem legume amargo: tem que comer e pronto. Eu não penso assim e acho maravilhoso quando o adulto que lê para a criança pequena começa a tomar decisões sobre as suas leituras, mostrando para o pequeno leitor que alguns textos lhe dão muito prazer e outros nem tanto. Para mim, é assim que se forma um leitor de verdade.
Mas veja que curioso. Outro dia conheci uma jornalista famosa. Uma mulher jovem com filhos pequenos: a mais velha com 3 e o caçula com 1 ano. Casada com outro jornalista famoso. Uma família que, a princípio, não teria problema algum com a leitura. Fantasiei a casa deles: cheia de livros lindos como eles.
Estávamos em um evento de trabalho. Ela me chamou em um canto e me disse que, aproveitando que eu parecia entender disso de ler para criança, queria saber por que não conseguia ler para os seus filhos.
"Como assim não consegue?" / "Eles não prestam atenção, a mais velha diz que é chato" / "Mas o que você está lendo?" / "Os clássicos, é claro" / "Tipo irmãos Grimm?" / "Isso mesmo! E Monteiro Lobato" / "E você consegue ler?" / "Ler não né, que eles não prestam atenção, eu conto a história" / "E por que você não troca de livro?" / "Queeeê?!"
Pois é, temos que admitir que até às vezes a leitura não dá certo por que a escolha não foi boa para a criança. Não quero dizer com isso que o livro é ruim (embora existam muitos livros muito ruins), mas apenas que a escolha daquele livro para ser lido naquele momento pode não ter sido feliz. E que para resolver isso basta trocar de livro. Sem dramas...
Assim, quando você se encontrar diante do dilema ler ou contar a história, faça um autoexame e questione as suas motivações:
1. Vou contar a história por que não gosto de ler em voz alta?
2. Vou contar a história por que acho o tema pouco adequado, melhor censurar?
3. Vou contar a história por que o texto é difícil e a criança não vai entender?
Se essas são as suas reais motivações, está na hora de rever. É simples e não dói.
1. Vou contar a história por que não gosto de ler em voz alta? Leia antes o livro, prepare-se. É um momento importante. E lembre-se, com o passar do tempo, lemos cada vez melhor.
2. Vou contar a história por que acho o tema pouco adequado, melhor censurar? Não leia aquilo que você não curte mas saiba que os filhos nem sempre gostam do mesmo que a gente. Temos que saber fazer exceções...
3. Vou contar a história por que o texto é difícil e a criança não vai entender? Pense em trocar o livro. Troque quantas vezes for necessário, volte a livros que antes não pareciam interessantes. Mas por favor, encontre um que você consiga ler para o seu filho!
É isso. Bora ler, então!
P.S. Não sei qual é o crédito da imagem que ilustra este post. Tirei da internet. Mas gostei muito do lindo sorriso da filha com o pai. Inspirou um novo post, sobre aquilo que as crianças aprendem quando os adultos leem para elas.